domingo, 28 de outubro de 2007

O shampoo que eu sempre uso acabou. Faltou tempo, disposição e, confesso, dinheiro pra ir ali comprar outro (ele não é caro, mas...). O fato é que lavei o cabelo com outro shampoo e meu cabelo ficou uma bosta. O fato corriqueiro é fácil de corrigir, basta ir comprar o de sempre e pronto, posso voltar a ser feliz (parcialmente, pq é difícil uma mulher realmente feliz com seu cabelo). Mas o que me incomoda é que meu cabelo, do jeito que eu conheço e gosto, não é meu! Ele é daquele shampoo e creme, que agem em conjunto e dão o aspecto que eu gosto aos meu conjunto de fios. E só eles, até agora, conseguem fazer isso sozinhos, sem o auxílio de secador, creme de pentear, chapinha e mil outros recursos. Não é revoltante que uma única marca de shampoo detenha o poder exclusivo sobre mim? O outro shampoo que tenho é superior ao outro em marca, qualidade e preço, mas simplesmente não serve! O cabelo que eu gosto não é meu, é daqueles dois imperadores! Dependo da presença deles para não me preocupar demais e deixar pra semana que vem aquele banho de creme ou qualquer outro tratamento salvador. Isso é anti a liberdade de escolha! Protesto! Mas vou já ali comprar o conjunto que se apoderou da minha identidade capilar. Afinal, antes presa a uma coisa boa que ter a liberdade de escolher os efeitos ruins.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Acordo

Ela se olhou no espelho do elevador e retocou o batom. Precisava parecer um pouco mais alegre, precisava tornar a máscara da mulher bem resolvida convincente. "Sem ressentimentos, Marco Aurélio, sem ressentimentos. Claro, podemos ser amigos", repetia mentalmente a frase para ver se poderia se tornar um pouco mais verdade.

Mas era impossível não ver que Nara estava triste. Subir de novo naquele elevador era doído demais, e não fazia idéia de como seria ir até o sétimo andar, parar em frente ao 704 sem chave e tocar a campainha. Lembrou-se do dia em que ele lhe deu a cópia da chave, lembrava de ter entrado ali nos braços dele, das sacolas semanais de supermercado, da reforma interminável, dos jantares românticos, lembrava de tudo.

Parou à porta e pensou em descer correndo as escadas, mas respirou fundo e tocou a campainha. Nada. Tocou a segunda vez desejando ardentemente que nada continuasse, mas ele veio correndo e abriu a porta de toalhas. Ficou surpreso ao vê-la. "Você?", a expressão de total desentendimento era pior que uma surpresa desagradável.

_Você esqueceu?

_Ah, desculpe Nara, a gente tinha marcado?

Aquilo doeu mais que a separação. Marcaram há uma semana o encontro para assinar os últimos papéis que diziam deles marido e mulher. Ela passou a semana se preparando para isso, duas sessões de terapia, conversas de apoio com os amigos, artigos de revista e até um programa de tv que achou encorajador. E ele esqueceu.

Falando muito baixo para não demonstrar a confiança desmoronando, ela disse muito baixo: _Os papéis.
Ele bateu na testa e pediu mil desculpas: Entre, entre.

Sentou como visita naquele sofá que ela comprara enquanto ele se apressou para vestir uma roupa. Devia estar entrando no chuveiro quando ela chegou, pois estava suado e com o cabelo em rebeldia.

Voltou pouco depois com uma bermuda e camisa amassada. Sempre tão desorganizado, como estaria se virando sozinho? Olhou ao redor e viu que a sala estava impecavelmente arrumada. Tinha um cheiro bom. Seus objetos estavam nos mesmos lugares. A decoração era exatamente a mesma e Nara imaginou que ele sempre gostou mesmo daquilo tudo e por que desmancharia uma sala tão bonita? Devia servir para encantar as mulheres que ele levava para lá. Seu apartamento virou um matadouro. Vacas, piranhas, cachorras... as imaginava entrando ali e aceitando um drinque. Ele falava qualquer coisa que ela não estava ouvindo, separando os papéis de uma pilha... a rescisão de contrato com o banco, a transferência do carro que ficara para ela, o acordo sobre o apartamento, algumas correspondências sem importância, um financiamento de uma chácara que ela agora iria assumir... enfim, o fim.


Ele juntou a pilha e colocou na mesinha na frente dela. Saiu para buscar uma caneta, ainda tão desconcertado com a presença dela ali que não achava nada com facilidade. Ela perguntou, tentando ser casual:

_Não está trabalhando hoje?

Ele ficou ainda mais perdido. _Me atrasei agora à tarde, daqui a pouco vou lá.

Ela nem se perguntou o motivo do atraso dele, estava mais ocupada em sofrer no momento. 
Quando finalmente tinha a caneta e Nara se preparava para assinar os papéis, ouve uma voz lá de dentro: _Amor, viu meu celular?

E uma jovem estonteante entra pela sala seminua e ainda suada. Pior que o choque de ver o motivo de um atraso para o trabalho foi ver a intimidade que ela tinha na casa. Procurava nas gavetas e por cima da mesa, quando entrou na sala, viu Nara e fez aquela cara de "Ué?". Marco Aurélio perdeu a cor. A moçoila pediu perdão, que não sabia que ele tinha visitas, que voltaria ao quarto, com licença, até logo, tchau.

Nara estava estática. Teve medo de começar a chorar, mas não precisou se controlar. Era um baque surdo que atingia seu estômago e a deixou paralisada. Levantou devagar e andou pelo ambiente. Não tinha notado os porta-retratos com o novo casal. Foi à cozinha e a comida era toda light diet naturella. Dela. Um batom jogado, uma bolsa ao acaso. Ela morava ali.

 _Me desculpe, Nara, eu não queria que você tivesse visto isso. Não queria magoar você, poderia ter sido mais sutil.

Ela escorregou numa cadeira e falou: Tudo bem.

Ele se apressou: _Toma uma água, vai te acalmar, me desculpe.

Deu a ela o copo gelado e correu ao quarto, não para brigar pela inconveniência, mas para falar desculpa amorzinho, pensei que fosse ser mais rápido, te deixei esperando, beijinho, beijinho, já volto, te amodoro princesinha.

 Encontrou Nara de pé no meio da sala de estar. Tinha uma faca na mão.

_Calma, Nara! O que é isso! Você não vai fazer nenhuma loucura, não é?

Ela indicou com a faca uma poltrona: Senta aí.

Trêmulo, ele obedeceu.

Ela pegou um objeto na estante. Caro, refinado, de bom gosto.

_Eu comprei isso aqui.

E pá, no chão. Ele tremeu e falou: Narinha, o que é isso?

_Narinha é sua avó e você vai ficar calado.

Pegou outro objeto e de novo pá. Pá pá pá pá pá. A estante inteira.

Ele quis correr, mas teve medo.

_Você deu uma desculpa esfarrapada de crise existencial pra acabar um casamento de oito anos e tem uma vagabunda da minha casa? Desfrutando da decoração que eu fiz? Do conforto do meu lar?

E destruiu a sala numa velocidade assustadora, quase ninja. Marco Aurélio correu pra acalmar seu benzinho assustado e pensaram em ligar para a polícia, mas ela tinha cortado o fio do telefone. O porteiro, mas o fio do interfone também.

O celular dele estava mais perto de Nara, era muito arriscado. O dela ela não achou.

Nara encarou  o casal e mandou: Sentem aqui e fiquem quietos. Suas vidas não correm perigo.

Em pânico, obedeceram.

Correu o resto do apartamento e quebrou tudo o que pode lembrar que ela mesma comprou, os pratos que lavou durante anos, a panela de fazer a farofinha do maridinho virou aço inox pela janela! Quebrou tudo que ela tinha posto ali para decorar e ser útil ao lar feliz que achava ter construído.

Deixou o resto porque estava mesmo velho, e ela não queria mais os lençóis que dormiram abraçadinhos e não queria mais nada além do dinheiro dele. Uma viagem, uma lipo, um amante. Ele ia pagar tudo, jurou.

Voltou à sala ele estava explicando para o 190 o que estava acontecendo. Ela pegou o celular dele e jogou pela janela. Ainda viu de relance que a foto na tela era dos dois juntinhos.

_Escute aqui, imbecil: eu não assino papel nenhum e você agora fala com meu advogado. Prepare o bolso. Quero até o último centavo.

 Saiu batendo a porta e teve uma crise de riso no elevador. Foda-se a terapia, foda-se o consolo dos bons amigos. Ela agora era vingança, ganância e sede de viver. Isso merecia um Bloody Mary. Libertador.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Reflexão

De repente ela está ali
Parada
Me olhando
Essa mulher não é de todo mal
Só me parece um tanto infeliz ou cansada, nem sei
Não tenho nada contra ela
É só que ela deveria se parecer um pouco mais comigo
Mas nem a conheço
De modo algum a imagem que vejo é proxima a que sempre imagino
E ela, parada, me olha de volta
Parece alheia ao que sinto
Não lhe causa estranheza me olhar daqui? pergunto
Ela se entristece
Não sendo eu, não pode ser ela
Porque ela sou eu no espelho
Mas eu não sou ela