quarta-feira, 10 de março de 2010

Dos ares

Então naquele ano os anjos desceram para dar presentes, pois o mundo (como é conhecido) estava mesmo prestes a acabar. Fui uma das agraciadas, não por beatice, santidade ou sorte, mas por preencher os requisitos. Eles viram que amo o universo e a beleza acima de todas as coisas, e, sendo de alma solitária, conseguiria guardar segredo. Foi me dado o dom de voar. Não por metáforas, nem como os pássaros, que precisam bater as asas num grande esforço. Me foi concedido voar como um vento, como pensamento. E meus limites seriam os mesmos de qualquer humano: o meu corpo. Eu não poderia sair da atmosfera porque lá fora não tem oxigênio, esse combustível que nos alimenta e consome. Também não conseguiria subir muito além das nuvens sem uma roupa apropriada para aguentar o frio, mas isso fui aprendendo aos poucos.

Ao me dar a graça, meu anjo contou que muitos humanos estavam recebendo dádivas, mas eu não poderia conhecê-los ainda. Alguns voariam, outros ficariam invisíveis, seriam mais fortes, leriam pensamentos, controlariam chuvas, encantariam serpentes e uma infinidade de poderes, mas que eles, os anjos, cuidariam para que nunca nos encontrássemos em ação. "Seria muito perigoso, a solidão é o único protetor contra a soberba", me explicou o anjo.


Nos primeiros vôos, planei sobre vegetações rasteiras, porque ainda não tinha coragem. Aos poucos, fui tomando altitude e explorando minha cidade e arredores, sempre nas madrugadas dos dias quentes. Arrumei uma roupa preta com capuz, para não ser vista. Essa era a principal regra: não ser vista voando por ninguém que pudesse estranhar tal fato. As pessoas normais se assustariam e saberiam, depois de descartadas as possibilidades da tecnologia, que eu voando era um sinal do apocalipse.


Quando comecei a ir mais alto e mais longe, achei que minha alma explodiria de encantamento. Como o mundo é belo, como é belo, e como as pessoas não veem? Acompanhei leitos de rios até o mar. Segui para os oceanos. Vi pulos de baleias, descansei em ilhas desertas, assisti a tanto nascer e por do sol que esqueci que o mundo estava acabando, sem nunca enjoar do ir e vir da luz do sol. Por cima da aridez, os desertos são sinfonias de cores e formas. Chorei ao ver pela primeira vez o Jalapão e, com algum esforço, cheguei ao Saara, para mais uma vez minhas lágrimas saírem dos olhos sem caírem no chão. Sentei no topo de pirâmides, fugi de tempestades de areia e voltei pra casa exausta.


Também explorei as maravilhas do mundo moderno. Tudo me dava muito trabalho de disfarces e horas e horas de observação até ninguém estar olhando, mas valeu à pena. Além das 7 da lista oficial, fui mais alto que qualquer turista na Torre Eiffel, Estátua da Liberdade, Big Ben e muitas outras que já não lembro o nome. Do alto, não se lê placas ou guias.


Américas e todos os continentes. As mais belas luzes das cidades. Antártica e Antártida. Prédios gigantes. Dubai. Amazônia. São Paulo, Goiânia, Palmas.. Cataratas do Iguaçu... E seriam longas páginas de memórias.


Depois de um tempo explorando a redondeza desse planeta, a solidão me era tão forte que queria gritar, queria levar alguém no colo, estava morrendo por não compartilhar. Mandei um email para meu anjo (sim, todos os caminhos são válidos), e ele apenas me respondeu com a principal regra em negrito. Passei uns dias sem vencer a gravidade, lutando para não blasfemar meu ente celeste e ver alguma solução. Foi numa noite tediosa que vi Belinha aos meus pés, dormindo, que pude compreender. Ainda de madrugada, a levei bem aquecida para correr nos morros e brincar com vacas que pastavam por lá. E passear com cachorro nunca mais foi apenas uma voltinha no quarteirão.


Entendendo melhor a regra, dancei no ar para loucos incuráveis, crianças, velhos caducos e até ajudei bêbados e drogados a acharem o caminho de volta para casa. Num sonho, meu anjo apenas me pediu cuidado. Eu não tinha o direito de interferir no destino de nenhum deles. Mas ainda pude ser apenas um sonho, alucinação, história fantástica e "eu vi de verdade, mamãe, eu juro que vi uma mulher voando e ela dançou no ar pra mim, e me mandou beijos!" 


Já estou com os ossos desgastados pelas rajadas de vento, com olhos cansados de tanta luz e cor, e agora me resguardo um pouco e fico perto de casa, brincando com nuvens e acompanhando pássaros de vez em quando. Meu corpo envelheu, mas minha alma brilha como diamante ao sol. Saí do Centro-Oeste e comprei uma casinha perto da praia, porque decidi morrer ouvindo o barulho do mar. Sobrevoar as ondas me aliviava as dores da degeneração do corpo e nada como uma maré pra me trazer paz. Tenho hoje uma filha da filha da filha (já não sei a geração) da Belinha, que segue me acompanhando fiel e alegre.


Esses dias, perguntei ao anjo: Mas, e aí, o mundo não vai acabar? Ele apenas sorriu e continuou comendo as laranjas que colhi ontem numa terra não tão distante. O sol estava se pondo de uma maneira mais uma vez estonteante, mas ele não pareceu notar.